Gabriel Cruz Lima é jornalista pela Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. É autor de “O Último Romântico” (BAR Editora, 2020). Assim como o São Paulo Futebol Clube, está de volta no coração dos emocionados e a um passo de um título relevante.
A televisão ligada no mudo fala sobre o voo rasante de uns pássaros. Coloco a esponja no porta-detergente. Corre água pelo prato e tira espuma laranja de há pouco, resto de um macarrão irreproduzível. Já quase sem gás, dou mais um gole no champanhe para destampar a veia na testa e responder mais, responder tudo. Fecho uma torneira enquanto os fogos explodem na rua. Ela diz:
— Pensa bem, você consegue ser um pouco menos irresponsável agora.
— Não acredito que isso tudo mude o contexto. Nada muda. Não me vejo na posição de mudar o tom do que eu escrevo.
— Sei que não é nada demais, mas um pouco de responsabilidade cairia bem agora. Vai por mim.
— Acho que você não entende a mensagem e culpa o artista.
— Você me subestima, porque isso te dá a impressão de que aquilo que você escreve é melhor do que é.
— Não faço nada pra te agradar.
— Mas parece que escreve para me contrariar. Quando você acha que está falando sobre o fascismo brasileiro, você deveria ter o mínimo de cuidado comigo, com você. Entendia a sua postura quando não tínhamos futuro, mas qual o sentido disso tudo enquanto festejamos?
—Esse cuidado diz respeito mais a você do que a mim, essa necessidade de proteger seu legado. Eu não tenho história e quero mostrar ao mundo uma ferida enorme. Mas hoje, tudo bem, vamos comemorar um pouco. Vencemos. Vencemos, né?
— Não é desculpa para você fazer o que está fazendo, José. Você parece um abutre, credo — e passa a mão no champanhe com o ruído das taças comemorando a vinda de um mundo imóvel, circunscrito ao nosso. Os homens anunciam esse tempo.
— Aprendi com a melhor. Escrever sobre os mortos sem nome das guerras, todas elas, apontando o dedo para onde devemos ir, o que isso difere de mim? Sempre com essa noção de que tem uma criança a ser guiada no tapete da sala, caçando qualquer ideia livre de desordem. No fim, quem escreve para contrariar quem e ainda, quem é o abutre?
— Você e sua geração não respeitam nada e você coloca a culpa em mim pela tentativa de destruir um projeto secular.
— Pra que venha qualquer coisa nova.
— Só crianças querem destruir tudo. Você já prestou atenção nos seus textos? Você relê o que você escreve ou só faz pra ficar de tititi na internet?
— Meus textos têm revisões e personagens muito mais plurais que qualquer porcaria já escrita por você.
—E mesmo assim são piores.
—Depende do seu ponto de vista.
—Não, a questão é objetiva. Você não consegue amarrar uma ponta na outra e disfarça isso com um projeto caricato. Literatura sobre o fascismo na internet, José? Com ilustrações para olhos cansados? Onde você acha que teria um espaço para uma reflexão de pateta senão em uma aldeia de idiotas? A coisa é séria, tem gente morrendo de fome na rua agora enquanto a gente lê.
— Pensar nos outros enquanto eu escrevo não é obrigação minha. Você, por exemplo, só fala isso quando te convém. Faz um texto de velha feminista e publica no jornal para parecer, novamente, uma matriarca das meninas que entraram na universidade. Nunca te vi falando sobre o problema do acesso à leitura, esse sim mais importante. Você sabe que não tem verve, não tem imaginação e é muito cansada para pensar em formas novas de entretenimento.
— Novamente, entretenimento não é arte. O tempo da literatura é outro. Não é essa rapidez com que você lida. Textos semanais sobre fascismo. Você abaixa a cabeça e escreve e não tem ideia do que está falando.
— Eu sei. Mas de um jeito que não é o seu. Eu vivo isso muito mais do que você.
— José, eu vim da ditadura, José. Você esquece disso para afirmar seus preconceitos. Você só fala de gente negra morrendo, gente negra apanhando.
— E tem leitor pra isso. Melhor que essa representação de estudante com uma camiseta vermelha cantando Geraldo Vandré. — desligo o som da Bethânia, porque tenho atitude, mudo de canal e o insólito das aves continua na cabeça das notícias — Publicar uns textos de vez em quando na coluna do jornal defendendo a Dilma não te faz antifascista e no fim, ao focar nessa dita estrutura, parece que você está preservando alguém, sem se arriscar e sem colocar nomes e contextos, agindo como se só os números nos livrassem do futuro.
— Então o que a gente faz? Pagar de galã de meia idade na internet e agir como se a destruição fosse a única saída não me parece razoável. Prefiro a ideia de, com todos os pesares, herdar alguma coisa e continuar dali.
— Não, eu não quero a saída, já disse. Quero curtir esse luto e essa festa. E você também. Depois a gente pensa nesse projeto de Brasil.
Já afastada de mais uma broma, mamãe se encosta na varanda e vislumbra a derrota do governo Mourão. Em outra dimensão, talvez eu diga alguma coisa que dê razão a ela. Abraçados, observamos o céu do alto da sacada.
Eles dizem que esse novo governo é um nada novo e estamos no precipício.
Concordo discordando, ou discordo concordando.
Porque se essa pólvora e o nitrato de um céu vermelho continuarem para gente, temos um problema, sinal de que os dividendos e carniças foram feitos de maneira correta, mas não justa. O que nos dá o direito de gozar dessa vista assim, sem problemas, afeito a sabe-se lá deus o quê. Mamãe e eu confabulando com um dedo circulando o champanhe, fazendo ruído do que imaginamos ser música, barulhos com a boca, cientes da impossibilidade de dizer o quanto é gostosa a sensação de que nada nunca mudará. Mas seguindo e adivinhando o que a televisão ligada no mudo tem para nos dizer.
Se esse fogo de pólvora e nitrato virasse apenas pólvora e nos buscasse, seria esse o elemento definidor do fascismo, pegaram os artistas ricos e brancos? De costas para a televisão, ouço o rumor de vozes mudas: a entidade dos homens de gravata demonstram o círculo das projeções monetárias e afirmam até onde foi a violência, até vinte centímetros abaixo do ninho das harpias. Sairemos ilesos ou, ainda, fingindo umas feridas para brincar de luta.
E se eles ali de terno, os especialistas de tudo, prevendo comigo o futuro, juntando um a um à conivência do mercado, isso faria de mim um narrador mais determinado, ou ainda, revelaria a possibilidade de algo diferente? Não.
Meu sentido, como eu e minha mãe nos apontamos, é a morte. Narrar momentos cuja violência esteja escrita no soco das crianças e no beijo amargo de droguinhas no carnaval. Pelo gosto de ver o corpo gelado saindo das minhas mãos. Tudo de brincadeirinha, claro. Para sua diversão, ou reflexão, tanto faz. Os bicos no mudo continuam a se mexer contra ou a favor da minha vontade.
No fim, encontro os meus parceiros, aquela mocinha gente finíssima da revisão, o homem mau da revista, a ex-namorada bumerangue, mamãe e os leitores, que, de maneira geral, semana a semana, veem muito humor misturado com sangue para nos saciarmos na literatura e no jornal. Está tudo bem. A tela anuncia um futuro inevitável, para além do tempo. Nunca pegarão as harpias.
Da redação: este é o sétimo de uma série de 16 textos do autor Gabriel Cruz Lima. Na próxima semana, a Aboio publicará o último capítulo antes de uma pausa de um mês.
As ilustrações são de Geórgia Ayrosa.